︎ ︎ ︎





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bastards brewery
contos bastardos


︎︎︎ as cervejas da bastards brewery sempre foram representadas por personagens próprios. agora também têm uma história.







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Próximo slide, por favor.




O elevador para. Olho pro painel onde o número 12 se acende. Fuck. Torço internamente para que não seja o esquisitão do 124. Qualquer um menos ele. Qualquer um menos ele…

A porta se abre e não vejo ninguém, mas o alívio dura pouco e o silêncio logo é quebrado pelo som apressado de um solado de madeira contra o piso de lajotas exageradamente tingidas de cera vermelha. A imagem não chega muito tempo depois do som e, em alguns segundos, já estamos dividindo aquele metro quadrado de desconforto. Ele entra dando um pequeno pulo para superar o vão e imediatamente dirige seu olhar para mim, antes mesmo de verificar se o seu destino já está selecionado no painel. Seu sorriso é ao mesmo tempo assustador e digno de pena.

- Bom dia.

Aponto para os fones de ouvido, tentando evitar qualquer conversa. Naquele momento não ouvia música alguma, mas ele não precisava saber disso. De qualquer maneira minha tentativa foi frustrada.

- Você mora no 134 né?

Retiro o fone direito em um movimento exageradamente lento, um protesto silencioso.

- Uhum.

- Em cima do meu.

- I guess…

Ele faz uma cara de quem não entendeu.

- Uhum, corrijo. E, em um movimento rápido, devolvo o fone ao buraco de onde nunca deveria ter saído.

Dizem que no inferno você passa a eternidade fazendo tudo aquilo que mais odiava quando vivo. Uma espécie de karma infinito e vitaminado. Homens, em geral, passam seus dias inteiros ouvindo mulheres falando sem poder interromper. Influencers nunca encontram sinal de 3G. E publicitários são proibidos de tecer um único elogio de autopromoção. Exatamente o contrário de mim. Já consigo imaginar um auditório repleto de olhares desconhecidos apontados para mim, sem intervalo, e orelhas atentas para captar cada detalhe sórdido da minha vida. Histórias, pensamentos, opiniões. Tudo o que eu consegui levar para a cova, mas que agora se projetam sem controle, como uma espinha no rosto de um adolescente. Um TED infinito que não traz nenhuma inovação tecnológica ou frases de efeito, apenas frivolidades de uma baterista com problemas de socialização.

Oi. Meu nome é Juicy Jill, tenho 32 anos e sou baterista em uma banda de funk. Próximo slide, por favor.




A porta do elevador abre e eu saio apressada em busca de ar limpo. Sinto o olhar fixo do Sr. Estranho na minha bunda, mas foda-se. Nada que eu já não esteja acostumada. Passo pelo porteiro e dou um aceno com a cabeça. Logo em seguida ouço o vizinho se aproximar e puxar um assunto qualquer, que pode variar entre o clima e os resultados do futebol na noite anterior. Pobre Antônio.

No instante que coloco o pé na rua sou bombardeada pela luz do sol. Algo semelhante ao canhão de luz quando estou no palco, mas com alguns quilowatts a mais, e muitas cervejas a menos.

Entro no banco de trás do uber, que pela expressão já me esperava há alguns minutos, e pego o celular que, combinado com o fone, é o kit de sobrevivência do antissocial. Antes mesmo da tradicional pergunta levanto a cabeça e digo:’

- Pode seguir o GPS, obrigado.

Seguimos em silêncio até o estúdio. Nenhuma outra palavra desperdiçada. 5 estrelas, sem titubear.




Eu perdi a virgindade só aos 19 anos com o baixista da minha primeira banda. Foi uma merda e nunca mais apareci para os ensaios.




O estúdio fica nos fundos de uma casa com cara de vila italiana. Janelas grandes, enferrujadas, paredes grossas. As flores e suculentas são muitas e surgem de todas as direções, como se fizessem parte da própria estrutura. Eu passo pela lateral e consigo sentir o cheiro de comida que escapa pelas frestas e rachaduras. Um odor cítrico, floral. Muito provavelmente uma torta de laranja, o que me leva imediatamente às férias de verão na casa da minha vó.

A comida dela sempre foi muito boa, afinal todo clichê existe por um motivo. Mas as tortas eram as minhas preferidas. Talvez porque a própria aparência rústica, texturizada, me remetia às suas rugas. E não porque achasse aquilo feio, velho, pelo contrário. Sua pele despertava o meu fascínio. Sempre me perdia ao olhar seu rosto e mãos, analisando cada mancha, cada rachadura. Enquanto as árvores têm arcos, minha vó tinha marcas na pele. Uma espécie de linha do tempo em 3D que traz em cada reentrância uma memória.




Quando eu tinha uns 9 ou 10 anos roubei dinheiro da bolsa da minha mãe para comprar chocolate, mas foi o meu irmão quem levou a culpa. Ele apanhou e eu nunca falei sobre o assunto.

Ouço as gargalhadas antes mesmo de entrar e elas não param quando eu coloco o rosto pelo vão da porta. Quando decidimos fazer uma banda de funk sabíamos que não era o caminho mais curto pra fazer fama. Ou dinheiro. Ou basicamente sobreviver, mesmo. Mas a gente sempre achou que valia a pena arriscar. E valeu mesmo. Éramos amigos, a banda nos transformou em família. Não os encontros forçados ou as discussões sobre política, só a parte boa (se é que ela existe).

O ensaio foi rápido. Mais por conveniência do que necessidade. O estúdio parecia um forno e aproveitamos a pausa para abrir as primeiras cervejas, o que transformou o intervalo em apito final. Eu ainda tinha que trabalhar naquela tarde, então fiquei na primeira mesmo. Tá, foram duas, mas não mais do que isso. Levo minha vida profissional muito a sério.




O emprego mais longo que eu tive durou 9 meses e eu separava as pessoas entre aquelas que eu gostaria de transar e as que eu tinha vontade de matar. O placar final ficou em 4 a 13.




Cheguei. Sentei. Atendi pessoas. Levantei. Fui embora. Não há nada mais para falar sobre um dia de trabalho.




Minha cantora de funk favorita sempre foi a Betty Davis, mas eu falo que é o James Brown pra poupar tempo.




Nosso show está previsto para 20h e eu chego pontualmente 20h30, como de costume. Dá tempo de correr até o bar, pegar uma cerveja e subir no palco. Sento na bateria e pela primeira vez desde que entrei no casarão quase centenário levanto os olhos. O bar tem mais gente que o de costume, o que está longe de significar lotação máxima. Alguns olhos já se voltam para o palco notando a movimentação e o tempo parece parar, o silêncio toma conta. Eu odeio cigarro, mas nessas horas até da saudade da fumaça encobrindo aqueles olhares curiosos.

A luz ambiente progressivamente se esvai enquanto o palco, na contramão, se ilumina. O canhão apaga os rostos e finalmente estou na minha zona de conforto. Já tinha feito aquilo milhares de vezes, mas sempre me despertava algo novo. Não aquela ansiedade quando você se prepara para o primeiro dia de trabalho ou a primeira foda. Mas aquelas primeiras vezes que te pegam de surpresa, como descobrir que está sendo traída ou que ganhou uma viagem para Jericoacoara na rifa do bairro.

Fecho os olhos, levanto os braços lentamente e os seguro em riste por alguns segundos. As marcas na madeira das baquetas acariciam minhas mãos. Encho os pulmões de calmaria uma última vez, por fim, me revelo.




Oi. Meu nome é Jill, tenho 32 anos e sou baterista em uma banda. Dizem que o funk nasceu para levar diversão às pessoas. Eu toco funk para me divertir, apesar das pessoas.




4, 3, 2, 1...